AOS 50 ANOS DA TROPICÁLIA, DESFOLHAMOS MAIS UMA HERANÇA TROPICALISTA: AS QUESTÕES DE GÊNERO E SEXUALIDADE

Aos 50 anos da Tropicália, desfolhamos mais uma herança tropicalista: as questões de gênero e sexualidade.

Sempre nos voltamos à Tropicália. Mesmo após cinquenta anos de seu acontecimento, artistas e críticos de diferentes gerações ainda retomam alguns dos legados tropicalistas na cultura brasileira. O projeto Somos Tropicália, do Gabinete de Leitura Guilherme Araújo, no Rio de Janeiro, o musical Alegria, alegria, estrelado por Zélia Duncan, que está rodando o país, e as pesquisas que todo ano são desenvolvidas nas principais universidades brasileiras não nos deixam mentir. Se é verdade que ela ainda é assunto, também é certo que alguns de seus aspectos foram trabalhados à exaustão e já beiram o desgate. Contudo, parece que somente agora estamos deglutindo — para usar uma das imagens tropicalistas — as questões de gênero e sexualidade deixadas, sobretudo, por Caetano Veloso e Gilberto Gil na década de 1970.

Já de início, é preciso deixar claro que, na trajetória da canção brasileira, não é exclusiva aos tropicalistas a subversão do status quo de gênero e sexualidade. Status esse que, em uma perspectiva contemporânea advinda dos estudos queer, diz respeito à noção binária de gênero, isto é, a concepção de que o indivíduo sempre deve se identificar como sendo um homem ou uma mulher; e à heteronormatividade como regra: o homem deve destinar o seu desejo sexual e afetivo à mulher e vice-versa. Nas décadas de 1970, 1980 e 1990, respectivamente, Ney Matogrosso, Marina Lima e Cássia Eller, apenas para citar alguns dos nomes mais representativos, confrontaram as convenções de gênero e sexualidade em suas canções, suas performances e suas imagens. Contudo, a nova geração de artistas e indivíduos LGBTQI+ (para usar um termo mais abrangente para a usual sigla LGBT) que tem surgido nos últimos anos, como Liniker, Linn da Quebrada, Raquel Virgínia, Assucena Assucena e os frequentadores da festa paulistana Santo Forte, como abordaremos mais à frente, parecem enxergar no Tropicalismo uma resposta às tentativas de dar forma a uma nova vertente teórica de gênero e a sexualidade que se desenha no Brasil do século XXI, a transviada.

Nascida do esforço de pesquisadores e militantes para realizar, à luz da realidade brasileira, uma leitura das discussões de gênero e sexualidade da teoria queer, protagonizada principalmente pela filósofa norte-americana Judith Butler, a corrente transviada tem buscado não somente uma tradução de noções como heteronormatividade não-binarismo mas, sobretudo, delinear e destacar as especificidades da complexa trama da experiência LGBTQI+ no Brasil. Em meio a esse contexto, abrir o baú do Tropicalismo com o entendimento de gênero e sexualidade do agora é uma tarefa inadiável. Sem corrermos o risco de soarmos anacrônicos, podemos localizar historicamente alguns traços de transgressão em canções e perfomances de Caetano Veloso e Gilberto Gil na década de 1970 — nuances pouco compreendidas em sua época. Paralelamente à busca por uma síntese de nossa identidade, feita através da mistura e do contraste de diferentes matrizes culturais, operações tipicamente tropicalistas, Caetano e Gil nos deixaram de herança fulgurações do que viria a ser uma forma de pensar a experiência transviada.

Da contracultura às performances de gênero do tropicalismo

Gênero e sexualidade nem sempre estiveram na primeira camada da obra dos tropicalistas. Frente ao processo de ditadura militar (que, diga-se de passagem, também censurava qualquer indício de transgressão à normatividade sexual, como foi o caso da gravação de Bárbara, por Chico Buarque, em 1972), as discussões sobre sociedade, desenvolvimento econômico e nação foram privilegiadas na agenda política que tangenciou o discurso e a práxis artística tropicalista. Porém, a partir do exílio de Caetano Veloso e Gilberto Gil, entre 1969 e 1971, seus questionamentos parecem ter extrapolado as questões estéticas e formais da canção e desconstruído, com maior ênfase, as fronteiras binárias de gênero na performance e na posição do sujeito da obra.

A cidade de Londres, no pós-revolução cultural de 1968, se tornava o grande centro da contracultura europeia e era um novo mundo para Caetano e Gil, que puderam conviver com tudo o que havia de mais revolucionário no ocidente àquela época. A banda The Rolling Stones, no auge, injetava grandes doses de sexualidade na música. David Bowie começava a explorar as possibilidades visuais e performáticas da androginia — que o acompanharia por um longo tempo — na capa da edição inglesa do disco The man who sold the world (1971). As substâncias psicoativas, o rock e a cultura estritamente urbana eram a força motriz de novas formas coletivas e individuais de expressão e comportamento que logo iriam ecoar na obra pós-exílio dos tropicalistas.


Detalhe da capa da edição inglesa do disco The man who sold the world (1971), de David Bowie.

 

Pouco a pouco, Caetano e Gil desenharam novas possibilidades de masculinidades. Consta na nossa história que Caetano Veloso, assim que retorna ao Brasil, em 1972, vai imitar, no palco, os trejeitos de Carmen Miranda “torcendo as mãos e revirando os olhos”, reforçando sua própria “ambiguidade sexual”, como o artista comenta, anos mais tarde, em sua autobiografia Verdade tropical (1997). Gilberto Gil, pouco tempo depois, em Refazenda (1975), grava Pai e mãe (Gilberto Gil), que mostra o conflito entre gerações: nela, o filho revela aos pais que beija outros rapazes na esperança de neles reencontrar a figura do pai, e, por isso, pede a eles que não se zanguem.

 

Na instância da imagem, a tanga de Caetano Veloso na capa do LP Araçá azul (1973) e a blusa leve e estampada de Gilberto Gil no show Refestança (1978), divido com Rita Lee, exploram o embaralhamento dos marcadores de gênero próprio da moda da década. Como uma memória do comportamento da época, o produtor Nelson Motta, em Noites Tropicais (2000), relembra o impacto de seu retorno ao Brasil, após uma temporada na Europa que fervia na revolução cultural pós-1969, no início da década de 1970, quando ele e Mônica Silveira, então sua esposa, vestiam o mesmo conjunto de calça, camisa e jaqueta, que tinham uma proposta unissex, “provocando olhares, espantos e risos”.

Gilberto Gil, Maria Bethânia, Caetano Veloso e Gal Costa, da esquerda para a direita, no espetáculo
Doces Bárbaros (1976) Foto: Ricardo Beliel

O ápice da leitura da contracultura europeia à brasileira talvez tenha sido o espetáculo Doces Bárbaros,também estrelado por Maria Bethânia e Gal Costa, em 1976. De um lado, Caetano Veloso e Gilberto Gil, usavam dos pés à cabeça, em determinada parte do show, um collant branco que, como as roupas dos bailarinos, atachava o corpo para deixá-lo nu e livre. De outro, Maria Bethânia e Gal Costa, apesar da feminilidade normativa impressa às saias e aos tops que vestiam, subvertiam a heteronormatividade ao encenar, em Esóterico (Gilberto Gil), um flerte homoafetivo entre duas mulheres — um dos momentos mais sutis do espetáculo. Quando juntos, os tropicalistas celebravam o amor livre de gênero, orientação sexual ou qualquer contrato social: “o seu amor, ame-o e deixe-o livre para amar” (O seu amor). Prolongando as discussões de Herbert Marcuse, principalmente as ideias desenvolvidas em Eros e civilização (1955), livro no qual o filósofo francês põe em diálogo o materialismo histórico de Karl Marx e a psicanálise de Sigmund Freud, a contracultura e o tropicalismo colocavam em prática a ideia de que o corpo e o desejo também podem ser campos de atuação política.

 

 

 

Passado e futuro

A fase que se sucedeu aos Doces Bárbaros foi, e talvez ainda continue a ser, considerada pela intelligentsia como sendo uma da mais alienadas de Caetano Veloso e Gilberto Gil e é a que podemos considerar como sendo a mais interessante para as questões de gênero e sexualidade na perspectiva tropicalista. O universo explorado por Caetano e Gil, que agora se encantavam pela dança, pela valorização do indivíduo e pelo hedonismo, não cabia em uma noção de engajamento político tão limitada à luta contra as bases estruturais repressivas e as instituições. Já é um clássico, nos anais das rusgas da música brasileira, a interpretação debochada de Elis Regina para a canção Gente (Caetano Veloso) em seu engajado espetáculo Transversal do tempo (1977–1978): “gente é pra brilhar, não pra morrer de fome”. Certamente, o distanciamento que hoje temos nos permite enxergar com um pouco mais de clareza os controversos discos Bicho (1977), de Caetano Veloso, e Realce (1979), de Gilberto Gil. Neles estão questões que levam adiante o que já se ensejava em Os Doces Bárbaros, isto é, o corpo e o sujeito como campos políticos, reposicionando-os, para além da contracultura, a partir de duas outras matrizes: a cultura africana e a cultura de massa.

Capa do disco Bicho (1977), de Caetano Veloso.

Fruto de uma viagem de Caetano Veloso à Nigéria, o disco Bicho é uma tentativa de estreitar os laços entre Brasil e África — ligação que logo fica evidente na primeira faixa, Odara, canção de sete minutos — como as gravações afrobeat de Fela Kuti. Em diálogo com a cultura iorubá, fortemente presente no Brasil pós-colonial, o sujeito em Bicho é o sujeito da cosmogonia africana, cosmogonia onde no princípio não era o verbo, mas, sim, a natureza. Todos somos um. Os animais, as plantas e os seres humanos estariam ligados por forças que emanam da natureza. Alguém cantando (Caetano Veloso), canção que encerra o disco, clama por essa essência. Sem marcadores de gênero, ouve-se, ao longe, uma voz que é bonita porque “mantém toda a pureza da natureza, onde não há pecado, nem perdão”. Não seria este um dos principais objetivos das correntes mais recentes de discussão de gênero e sexualidade, a primazia do desejo mais sincero do sujeito a despeito de qualquer amarra repressiva?

Dentro do complexo sistema de gêneros e representações sexuais da cultura iorubá, que extrapola o sistema binário homem/mulher, Caetano Veloso versa sobre duas imagens: a tigresa e o leão (que, notem, apesar da falsa simetria induzida, não são opostos). Em O Leãozinho (Caetano Veloso), interpretada muitas vezes como sendo uma canção infantil, o eu lírico da canção lança um olhar homoerótico sobre um rapaz jovem e bonito, que, anos mais tarde, Caetano Veloso diz ter sido inspirado em Dadi, então integrante da banda Novos Baianos. Na outra faixa, através da figura do narrador de Tigresa(Caetano Veloso), é traçada uma nova estilística de mulher que, embora dissidente de um projeto político de seu passado recente (“gostava de política em 1966 e hoje dança no Frenetic Dancin’ Days”), vislumbra um futuro onde “a tigresa possa mais do que o leão”. Concomitantemente aos movimentos da emancipação feminina no Brasil e no mundo, a tigresa condensa a mulher da passagem da década de 1970 para a década de 1980, cuja melhor e mais didática representação talvez esteja na série televisiva Malu Mulher, veiculada em 1979 pela Rede Globo de Televisão.

Capa do disco Realce (1979), de Gilberto Gil

Dois anos mais tarde, Gilberto Gil terminava a sua trilogia de discos de estúdio, iniciada com Refazenda (1975) e Refavela (1977), com o mais festivo dos três, Realce (1979). Das danceterias que cresciam nos grandes centros urbanos, nascia Realce (Gilberto Gil), canção homônima que abre o disco. Nela, celebra-se um desejo individual tão forte e genuíno que a qualquer momento poderia explodir… em purpurina. O brilho dos paetês e as frenéticas luzes da pista de dança realçavam novas masculinidades e feminilidades que agora não passavam pela contracultura mas, sim, pelos filmes, pelas revistas de moda e pela disco music que circulavam o mundo em escala massiva e midiática.

 

 

Se a modernidade, com todos os seus avanços esmagadores, deixou fraturas irreversíveis no indivíduo, o eu lírico de Super-homem (a canção) (Gilberto Gil) lamenta ter acreditado, um dia, na “ilusão de que ser homem bastaria”. Uma vez que a grande narrativa masculina não lhe dá mais um sentido completo, ele se volta à sua “porção mulher”, como na filosofia oriental Yin-Yang (que, embora aparentemente binária, possibilita o trânsito entre essas duas energias), na esperança de que então o homem possa ser superado. Abandando as mitologias ocidentais, a canção que encerra RealceLogunedé(Gilberto Gil), desenha a imagem do orixá Logun Edé para deixar nas entrelinhas a fluidez das performatividades de gênero nas religiões de origem africana. Ao saudar Logun Edé, louva-se um orixá que, trazendo características de seus pais, Oxum e Oxóssi, é, por seis meses, feminino, quando vive nas águas, e nos outros seis meses, masculino, quando caça no mato.

A práxis tropicalista de Caetano e Gil, ao unir o passado, em uma perspectiva de ancestralidade, ao presente, com todas as suas possibilidades, matiza o Brasil e complexifica a experiência brasileira, o que faz com que suas obras soem sempre atuais e coerentes ao seu tempo. Na década de 1980, com a transição democrática, a descoberta do vírus HIV e o reposicionamento do Brasil na periferia do mundo, gênero e sexualidade em Caetano e Gil ganharão outros contornos. Perde-se a euforia que ainda ressoaria no eu lírico bissexual de Corações a mil (Gilberto Gil), gravada por Marina Lima, em 1980, e é lançado um olhar muito mais consciente das contradições socio-políticas. Em Podres poderes (Caetano Veloso), de 1984, os “índios”, as “bichas”, os “negros”, as “mulheres” e os “adolescentes fazem um carnaval” a despeito da “incompetência da América católica”. No espectro moderno das identidades, Eu sou neguinha? (Caetano Veloso), de 1987, deixa o corpo exposto em um beco sem saída, do qual provavelmente ainda não saímos: “totalmente terceiro sexo, totalmente terceiro mundo, terceiro milênio, carne nua, nua, nua”. Não seria essa uma boa definição do que viria a ser a teoria transviada?

 

 

Revirar o baú com o olhar no hoje

Se concordarmos com a hipótese de que o tropicalismo extrapolou o rótulo de vanguarda e tornou-se hegemonia na cultura brasileira, ideia exposta por Francisco Alambert, em “A realidade tropical” (2012), no que diz respeito ao gênero e à sexualidade, podemos verificar que seu legado não somente transbordou um período histórico delimitado como também é a todo momento evocado para a formação de novas identidades brasileiras.

As citações muitas vezes são diretas, como no caso da banda As Bahias e a Cozinha Mineira. Nos shows do disco Mulher (2015), as mulheres trans Assucena Assucena e Raquel Virgínia deram voz a canções como Tradição(Gilberto Gil), de 1979, onde um eu lírico diz desejar uma moça comprometida mas acaba observando, com maior interesse, o seu namorado, “um rapaz muito diferente” e lindo, e Vaca profana (Caetano Veloso), de 1984, onde um sujeito “tímido e espalhafatoso” clama, contra os caretas, pela “dona de divinas tetas”. Linn da Quebrada, outra mulher trans que tem se destacado no cenário atual, em Mulher (Linn da Quebrada), de 2016, canção que expõe uma visão sobre a condição periférica das travestis e das mulheres trans na sociedade, parafraseia e põe um ponto de interrogação em uma das afirmações presentes em Da maior importância (Caetano Veloso), gravada por Gal Costa em 1973: “uma mulher é sempre uma mulher?”.

Outras vezes, o diálogo se faz a partir da apropriação de um imaginário tropicalista. Quem observar a performatividade dos frequentadores da Santo Forte, tradicional festa para a comunidade LGBTQI+ jovem na cidade de São Paulo, poderá ser levado rapidamente às imagens de Caetano e Gil na década de 1970. Ali, onde há um esforço pela valorização da música brasileira e onde são tocadas com grande expressão gravações do repertório tropicalista, os novos baianos passeiam pela garoa transviada. Pulseiras, colares, brincos de penas e estampas com motivos tropicais vestem e adornam corpos que se pintam, dançam e celebram o sonho da liberdade do corpo, ideia que pode ser localizada já na década de 1970, como vimos.

A banda Liniker e os Caramelows. Foto: Leila P.

A experiência tropicalista de gênero e sexualidade nos evidencia a trama complexa de matrizes culturais que foram fundamentais para a formação LGBTQI+. A leitura da contracultura europeia, as instâncias da imagem e da performance, em um contexto midiático, e a ancestralidade africana moldaram possibilidades de existência à brasileira, que hoje tanto buscamos recuperar.

Sem dúvidas, se hoje conseguimos enxergar os aspectos de transgressão tropicalista é somente porque muito já se discutiu no campo dos estudos de gênero e sexualidade. Contudo, nos voltarmos ao que foi deixado pelos tropicalistas significa dar uma dimensão histórica que, às vezes, é deixada de lado nas abordagens pós-modernas. Para de fato realizarmos uma leitura transviada das discussões correntes de gênero será necessário revirar, localizar e analisar o que foi feito antes de nós, compreendendo os processos históricos, culturais e sociais que nos levaram até aqui. É preciso avançar, sem esquecermos o nosso passado.

Fonte: https://medium.com/revista-bravo/tropicalismo-transviado-fdc345e56079

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